
A casa de Ugo.
Itália. Não estava nos meus planos de viagem. Acontece que o “Camino” tratou de colocar eu e Francesca na mesma estrada. Foi em Portugal, na saída da cidade onde nasceu José Saramago. Tiramos a foto da estátua do escritor com uma diferença de tempo que é um nada e um tudo na vida: uns dez minutos. Não nos vimos, eu estava na frente, mochila nas costas, segundo dia de caminhada, feliz, mesmo com a dor no corpo e nos pés, sem saber o que viria a ser esse tal de Caminho de Santiago. Como eu poderia imaginar que o maior significado desta viagem estava logo atrás: os encontros e desencontros. Francesca andava com amigos peregrinos, entre eles o Michael. Todos nós fomos colocados juntos por esse nada de tempo e espaço, ambos relativos.
Eu andava sozinha a fotografar as flores nas calçadas. Francesca reparou naquela pessoa apaixonada por flores lá na frente e ficou curiosa. Logo o grupo me alcançou, veio a conversa e um laço muito forte nos uniu. Agora, olhando para trás, é incrível pensar nisso. Eu sempre vi a vida assim, cinquenta por cento nós dirigimos, a outra metade chega sem direção ou aviso. Então foi aí que, a casa e a família da Francesca entraram na minha história. Francesca me chama de “Fiore” por causa das flores, e eu a chamo de “Pricipessa”por causa da nobreza na alma que ela carrega. Ela é linda também, tem idade para ser minha filha, mas se tornou uma amiga, assim como meus filhos.
A foto abaixo é o “quintal” da família, a terra. Lindo é o verde acinzentado das oliveiras. Quanto mais velhas e grisalhas mais lindas ficam. Bela e muito velha é a montanha onde o pai do pai da Francesca comprou as castanheiras há anos atrás. O ar é fresco e puro lá em Civitella, o silêncio é reservado aos pássaros que cantam e às folhas que se tocam. Pena que fiz um passeio muito rápido por esse bosque cheio de história de gente e de árvores tão antigas. Foi assim que eu perdi o trem de volta para Nápoles. O Ugo queria mostrar as castanheiras antes que eu fosse embora. Depois que cheguei lá em cima o trem já não tinha a menor importância.
A família da Francesca não depende mais de colheitas para o sustento. O Ugo é médico, o “zio” (“tio” em italino) Angioletto é farmacêutico e fazendeiro, o zio Fábio é designer gráfico, e por aí vai, mas a relação com a terra ainda é muito forte. O azeite que produzem, a colheita da castanha, as frutas, a horta, os ovos frescos, são o passado ainda presente, orgulho de muitos italianos que vivem no sul. Eu também teria orgulho.
Confissão: Eu roubei e comi muitos tomates cereja do zio Angioletto e da zia Franca. A casa deles é em frente à casa da Francesca. Quando é que eu teria uma oportunidade dessas novamente?
Zio Fábio, um amor de pessoa, trouxe esse buquê de flores de abóbora para fazer com pasta. Tem coisa mais linda que a Principessa segurando esse buquê? Será que alguma noiva já carregou um buquê de flor de abóbora? Eu acho que casam bem.
Essa é a cidade. O Ugo diz que Vallo della Lucaina não devia ser chamada de “cittá” por que é muito pequena, então seria um “paese”.
Lá tem uma fonte. Em Ilhabela também tem uma fonte. E o que tem demais nisso? Ambas são de muito mau gosto, não combinam com a arquitetura do lugar e custaram uma fortuna. A deles é azul, a nossa, colorida. São tantas histórias parecidas com as daqui, se prestar atenção…
Mas tem uma outra, essa é bem mais interessante e bonita.
Vallo della Lucaina não é cidade turística e provavelmente eu fui uma rara visitante do Brasil que se atreveu a preparar nossa comida num domingo, para uma família italianíssima. Foi camarão na moranga, arroz branco e manjar branco para a sobremesa. Se tentar isso na Itália aconselho servir caipirinha antes!
Os italianos são muito exigentes e tradicionais quando se trata de comida. Os pratos são muito simples, porém os ingredientes são maravilhosos. Essa é a vitrine de queijos na padaria. Melhor não mostrar o resto, não recomendo, pode produzir uma salivação incontrolável e um inveja indigesta.
Falando em exigência…Francesca e Mattia me levaram a uma boa pizzaria local. Quando você escolhe a pizza vem o nome do produtor da mozzarella no cardápio! Cuidado ao pedir uma pizza individual desacompanhada, elas são enormes. Na foto tem o garfo e a faca, mas os italianos comem pizza com as mãos. Você corta um triângulo, dobra e “mangia che ti fa benne”. A pizza da foto foi em Nápoles.
A família. Um italiano sozinho é espirituoso, passional, bem humorado e “reclamão”, e quando eles se juntam são divertidíssimos. Adoro. Mas entender a família reunida era impossível quando usavam o dialeto na conversa. Mais fácil olhar para as mãos, elas dizem muito no caso dos italianos.
“La famiglia”tem uma marca exclusiva, “LA COMPAGNIA”. Zio Fábio foi quem criou. Na foto, temos a Francesca carregando a bolsa estampada com a marca. LA COMPAGNIA tem grupo restrito no whatsapp, por exemplo, e só quem tem sangue dos Merola entra.
Dias de verão. Zio Fábio sempre vem para um banho de piscina. Praticamente todas as toalhas e roupões pendurados no varal ao lado da piscina são dele. Me surpreendi quando soube o quanto ele ama e o quanto conhece nossa música. Ele é muito simpático e não demora muito para entender que o sorriso é franco e enche a casa de alegria. Adorei a esposa também, Stefania.
Ugo, “il dottore”, pai de Francesca, um homem muito “particular”. Para contar sobre o Ugo decidi escrever tudo que me vem à cabeça, na ordem que vier. Um, dois, três, já: ele corre, não anda, reclama feito velho e brinca como criança, é amado, ama a vida e amaldiçoa formigas no quintal. É criativo, tem alma de artista e cientista, se importa com pessoas, se incomoda com pessoas, cava o próprio buraco da piscina que ficou linda, e coloca a nascente do Rio Nilo lá. Repare no cano.
Alguns afirmam que as águas do Nilo se abriram para dar passagem a um povo. Então qual o problema de se levar um pouco da nascente para o quintal? A dele vem de um cano vermelho e a foi quem Francesca o inspirou. Vermelhos também são o telefone público ao lado da piscina, e seu Flix Bus , que é uma motocicleta enorme e confortável.
Comida preferida: aprecia pratos simples, mozzarella, tomates , azeite e pão. Sempre diz que come depressa e que isso não é bom. Um dia levou eu e Francesca para um barco de pesca de um amigo pescador, o Roberto. Fomos puxar a rede. Quando voltamos para a terra tínhamos um banquete mediterrâneo preparado pela esposa do Roberto. Essa é a comida que il dotore aprecia. Eu também!
A perna dói, o estômago dói, a dor não é permitida para os próprios médicos. Trabalha muito, demais. Trouxe para casa cebolas roxas e linguiça caseira, mimos de pacientes muito gratos. O papel de um médico devotado é divino. Ele é importante. Como não admirar, santificar e até querer seu sacrifício? Mas “il dottore” precisa de férias, porque é feito de carne e osso, não tem descanso há dez anos, e além de curar vidas, construir piscina com nascente do Nilo, ele varre o quintal, tira a porta do banheiro, conserta, coloca a porta do banheiro de volta, mas não tira a comida velha da geladeira, não usa a máquina de lavar roupas e não faz outras tarefas supostamente femininas. Chegou a se oferecer para fazer um espaguete alho e óleo. Eu devia ter aceitado só para ver ele pilotando o fogão, mas já era tarde.
Esse foi o passeio que fizemos. Ele conhece os nomes das montanhas de toda a costa de Cillento e os recortes geográficos. Queria me fazer decorar os nomes repetindo mil vezes. Viajamos 300km no Flix Bus vermelho, em estradas cheias de curvas. Ai que medo! Ai que lindo! Na volta perdi o medo. Ai que lindíssimo! Agropoli, Acciarolli, Pioppi, Marina de Casal Velin, Pisciotta, Caprioli, Palinuro, Camerota, Sapri, Maretea, Monatea. Na volta procurávamos melancia que vendem na beira da estrada. Já levou melancia numa moto? Meia melancia coube no compartimento. Coisa de louco!
Achava que, sem a Francesca traduzindo, a barreira da língua entre nós iria ter o tamanho das montanhas no caminho, pois o inglês se mostrou inútil dessa vez. Mas Maomé veio à montanha durante a viagem: ele começou a se esforçar para entender português e falou mais devagar em italiano e com algum espanhol, pronto! Conseguimos entender um ao outro.
Ah! Paestum, primeira parada no passeio pela região de Cillento, ficou por último. É incrível caminhar ali e pensar que houve um passado tão distante de nós, que na verdade é outro nada no tempo do universo. Sítios arqueológicos são ruínas que servem para lembrar o quanto somos insignificantes e passageiros…
…e o quanto essas civilizações eram adiantadas. Olha aí o “Flix Bus” usado antes de Cristo nascer! Achou? Essas são peças recolhidas das ruínas.
Bem, enquanto estou por aqui, nesse mundo, sou grata. Essa história foi a resultante do desdobramento do tempo, que começou a contar a partir da diferença de dez minutos entre eu e os peregrinos atrás de mim. Se eles tivessem andado um pouco mais devagar, e se eu não tivesse reparado nas flores, nada disso estaria escrito e eu não sentiria saudades dessa família e desse lugar.
Ps.: “Flix Bus” é o nome de uma empresa de ônibus de viagens que são muito baratos, mas confortáveis. Eles circulam pela Europa. Não são vermelhos, são verdes.
Bonita viagem. Linda reportagem que também nos transporta para esse local.
Gostei de rever a Francesca, o seu sorriso e à vontade!
Beijinhos.
Fernanda
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Vocês foram uma parte especial da viagem também. Sou grata por ter conhecido vocês, pena que não tivemos mais tempo.
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Amei de paixão!!! A delicadeza e a beleza da descrição de tudo me encantou!!! Delícia de viagem!!!!
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Obrigada, Mariot! Beijo
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Amei de paixão!!! A delicadeza e a beleza da descrição de tudo me encantou!!! Delícia de viagem!!!!
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Querida amiga, que gratidão ler e sentir esses momentos que viveu, escreve mais, viaje mais e nos traga a belezura desse mundão com seu olhar todo peculiar…. Amei cada relato do seu blog, deixa sempre a sensação de quero mais…..
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Muito bom poder compartilhar isso! Obrigada!
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Apaixonante descrição de uma típica família italiana, suas terras e seus amores, como se saíssem diretamente de um filme para nós!
Bárbaro Elo, vou ficar com saudades de suas narrativas! Conte nos mais, faça um desdobramento das histórias, agora fico com a mesma sensação de “quero mais”de quando acaba alguma série de Tv que gostei muito! Beijo e vou esperar por mais capítulos que virão, certamente! Não pare!
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